Produções Literárias: Sothis e a Fênix | Por Rosa Medeiros


         Ela só pensava em dar fim àquela dor lancinante que os espinhos, cravejados em sua derme, provocavam à sua alma. Sem forças para resistir, deixou-se levar pelas águas salgadas do mar.

Dezoito anos antes, nascia Sothis, uma estrela-do-mar que adorava ler horóscopos e era fascinada por astros e mitologia. Culpa da sua mãe, que lhe contava criativas histórias na infância. Cresceu ouvindo-a contar que ela era uma estrela especial, pois vivia no céu e era parte de uma importante constelação. Explicava que fora trazida à Terra no bico de uma grande ave de fogo que, por descuido, deixou-a cair nas profundezas do mar, onde aprendeu a viver às custas de sucessivas adaptações ao novo e salgado habitat.

Durante a infância, Sothis, inebriada com as histórias de sua mãe, vivia olhando para o céu, imaginando como seria viver por lá, brilhando radiante entre as outras estrelas celestes e visitando planetas no bico de um enorme pássaro de fogo. O tempo foi passando e, à medida em que crescia, Sothis foi entendendo que estrelas não caem do céu e que pássaros de fogo só existem na mitologia. Contudo, qual não foi sua surpresa ao descobrir, em suas leituras, que existia sim uma estrela com seu nome e que, de fato, é a mais brilhante da Constelação Cão Maior? Tal estrela tem cerca de vinte vezes o tamanho do sol e também é conhecida como Sirius, na cultura ocidental. Imediatamente, foi confrontar sua mãe, que olhou firme para a filha e disse que, no dia do seu nascimento, sentiu a presença de um enorme pássaro de fogo sobrevoando o oceano e o ouviu sussurrando, com uma voz celestial: “Sothis”. A filha não conteve o riso, sendo imediatamente censurada pelo olhar sério da mãe. No fundo admirava a criatividade da sua genitora e até hoje se pergunta o motivo de ser uma criatura tão sonhadora e sentimental: a influência materna ou o fato de ser uma estrela canceriana com ascendente em peixes e lua em câncer? De uma coisa, porém, tinha absoluta certeza: com esse mapa astral, seu destino seria sentir tudo de bom e de ruim com muita intensidade, ao logo de sua vida marinha.

Da adolescência à vida adulta, Sothis viveu amores e dores, alegrias e tristezas, tudo de forma intensa, como autêntica canceriana. Sofreu perdas irreparáveis e experimentou, pela primeira vez, uma das maiores dores da vida: perder quem se ama. Mais que um buraco no peito, a perda de um ente querido é também a perda de uma parte de nós. Talvez a perda da nossa melhor parte, pensou.

Sothis foi aprendendo a administrar o luto, Sothis, sem, contudo, deixar de sonhar com o dia em que encontraria o verdadeiro amor. Aquele que nadaria ao seu lado pelos mares até o fim e com quem a vida ganharia cor e sabor.

O tempo passava e a estrela só colecionava desencontros. Solitária, vivia seus dias olhando para o céu e imaginando que deveria ser melhor ser uma estrela celeste do que viver nesse vasto, frio e selvagem oceano. Desejou que a fantasia de sua mãe fosse real a fim de que pudesse partir para junto dos astros.

Assim se seguiam os dias: monótonos e vazios. Até que, em um determinado dia de julho, logo após seu aniversário, o destino fez com que as ondas do oceano a trouxessem um presente: Thorn! Ele era um espécime masculino exuberante de equinodermo! Suas cores eram vibrantes, tinha quase o dobro do tamanho de Sothis e ainda possuía uma linda coroa de enfeite. Claro que ela imediatamente se viu atraída por ele. Como se saísse das sombras e fosse ao encontro da luz! Caudaloso, aventureiro e vibrante, Thorn levou Sothis a desbravar vários oceanos, conhecer lugares e criaturas marinhas que ela nunca havia visto. Ela até começou a amar o oceano novamente e sentir como é maravilhoso nadar na imensidão dos mares, não mais sozinha. Ah, não havia dúvidas: foi contagiada pelo entusiasmo de Tohrn e estava irremediavelmente apaixonada por ele! E como era bom amar, como era bom se sentir amada!

Infelizmente, não demorou muito, para que Thorn começasse a mudar de comportamento e, numa dessas idas e vindas das ondas do mar, ele começou a machucar Sothis profundamente. A máscara de Thorn finalmente caiu, revelando sua verdadeira face. A coroa que o enfeitava era, na verdade, feita de espinhos altamente venenosos e espalhados por todo corpo. Ele era uma estrela-do-mar da espécie Coroa-de-espinhos, coberto de ferrões pontiagudos altamente tóxicos, podendo danificar o sistema nervoso de suas vítimas. Sentindo o corpo dilacerando, Sothis olhou para Thorn e perguntou a si mesma, em voz alta: “como não enxerguei o que de fato és? Como não identifiquei, aos primeiros sinais, a espécie a qual pertences? Como pude me deixar cegar pelos meus sentimentos e ignorar que eras feito de espinhos e que, no fundo, veneno é tudo que tens a oferecer a quem cruza teu caminho?”. Percebendo que não adiantava mais disfarçar, Thorn soltou alguns ferrões na direção de Sothis — a quem, dias atrás, dizia amar — e virou-lhe as costas, nadando para longe e sumindo para sempre, oceano a dentro. Nesse instante, Sothis sentiu como se o chão de areia se abrisse sob ela, implodindo seu corpo e seus sonhos de uma só vez.

Os dias se seguiram com muita angústia e dor. Aqueles espinhos, que ela não conseguia enxergar enquanto estava com ele, entravam cada vez mais fundo em sua carne até começarem a perfurar também a sua alma.


Sem forças para resistir à dor lancinante, Sothis deixou-se levar até a superfície. Chegou a boiar sob o sol, até que percebeu que aquela luz ofuscante não vinha do astro rei. A luz vinha de uma…de uma ave!? Sim, uma esplendorosa ave, de penas brilhantes em tons púrpura, dourado, azul e vermelho!

— Quem é você? Eu morri? - perguntou Sothis, incrédula.

— Você sabe quem eu sou e não, você não morreu.

— Você é a Fênix, a ave mitológica? Mas então estou delirando?

— Estrela Sothis, eu estou aqui para te provar que você é capaz de superar dores inimagináveis e se morrer por dentro, pode se regenerar e renascer das cinzas, assim como eu.

— Eu? Deve haver algum engano. Sou apenas uma estrela-do-mar e, na verdade, boiei até aqui para…

— Para dar fim ao seu sofrimento. Eu sei. Mas, inteligente como

você é, deve saber que para uma criatura tão frágil fisicamente, a ponto de não suportar muito mais que 30 segundos fora d’água, sobreviver nesse planeta selvagem é preciso ter muita força. Não sabe?

— Mas eu não sou forte, não mais. Suportei muitas dores, é verdade, mas esses espinhos cravados em mim foram fundo demais. Atravessaram minha pele e atingiram a minha alma. Eu não sou como você, essa criatura que ressurge das cinzas.

— Aí é que você se engana, minha doce estrela-do-mar. Você é

mais parecida comigo do que imagina. Veja, estrelas da sua espécie são capazes de suportar diversas variações de temperatura ao logo dos oceanos de todo o planeta, incluindo as gélidas águas polares; vocês podem alcançar profundezas abissais, vivendo em até 6.000 metros abaixo da superfície. Predadoras vorazes, são capazes de devorar suas presas inteiras ou ainda de realizarem a eversão de parte do sistema digestivo, a fim de digerirem o alimento externamente, antes de absorvê-lo. Essa habilidade singular permite com que consigam se alimentar de presas muito maiores do que vocês. Bom, acho que já deu para perceber o quanto é especial, não?

— Sim, mas eu…

— Já vi que não… então, vamos lá: Você sabia que estrelas do mar

não precisam de outro ser para se reproduzir? Sim, minha cara estrelinha, vocês podem se reproduzir tanto sexuada quanto assexuadamente. Através da fissão de seus corpos, podem vir a se regenerar, gerando verdadeiros clones de si mesmas!!! Quanto ao sistema de defesa e autopreservação, são capazes de soltar seus braços, para distrair o predador e depois regenerá-los. Também são capazes de autorregenerar partes do corpo machucadas ou danificadas, minha querida Sothis Wolverine!!

— Sim, tudo o que falou é verdade. Por sermos frágeis somos dotadas de uma incrível capacidade de adaptação e mecanismos de sobrevivência nesse oceano cheio de violência e incertezas. Mas, Fênix…

— Pode me chamar de Bennu, prazer!

— Ah, sim, Bennu. Bom, Bennu, todas essas qualidades que você

citou são habilidades físicas, que foram adquiridas com o passar dos anos, como evolução necessária para preservação da nossa espécie. Mas a dor que me aflige é de outra ordem. Os espinhos me envenenaram a alma. Não posso lançá-la fora e regenerá-la.

— Interessante observação, minha sentimental estrela. Porem, é

exatamente nesse ponto que você mais se parece comigo.

— Como assim, Bennu? Se eu pudesse renascer, eu o faria agora

e viveria uma vida plena, bem longe de seres marinhos tóxicos!

— Sothis, você ainda não percebe? Sua alma está em chamas,

perto do fim. E o que você está fazendo? Você acionou seu mecanismo de defesa mais sofisticado! Aquele que te faz única dentre tantas estrelas nesse vasto oceano, o seu dom singular: sua irremediável capacidade de sonhar e viajar em busca do amor.

— Amor? Não me fale em amor. Nunca mais quero entregar meu coração a ninguém.

— E quem disse que você tem que entregar o seu amor? Para isso acontecer novamente, primeiro você tem que cultivar outro tipo de amor. O amor que está buscando, que será o alicerce da regeneração da sua alma, é o amor por ti mesma. O amor que vai fazê-la abrir os olhos e enxergar o quão incrível e única você é. O amor que vai te fazer descobrir caminhos que sequer imaginava possíveis, que vai fazer sua alma renascer, repleta de novos sonhos. Sabe, alguns serem são infelizes, pois não sabem lidar com o amor. Muitas vezes, nem o reconhecem ou sabem como cultivá-lo. E, devido a essa inabilidade, ao longo da vida, só conseguem machucar quem cruza seus caminhos; causando dor e devastando quem os ama. Esses seres aniquilam, assim, a própria chance de serem felizes. Mas o seu, minha estrela talentosa, é o dom de amar e de regenerar o amor tantas quantas forem as vezes que tentarem destruí-lo dentro de você.

— Eu? Mas, mas como faço isso Fênix, quer dizer, Bennu?

— Você já está fazendo, minha cara estrela. Não está aqui conversando comigo? Assim como faz com seu estômago, para alimentar seu corpo físico, você lançou sua alma até mim. Viajou, através da mitologia, até um mundo tão vasto quanto o mundo dos astros, que tanto admira, e veio ao meu encontro. O que eu fiz foi despertar a verdade que já estava dentro de você, mas que a dor não a deixava enxergar. Mas lembre-se: tudo isso é um processo, que vai lhe exigir muita perseverança e paciência. No entanto, valerá 100% a pena, pois o dia em que esse amor vier para ficar, ninguém mais terá o poder de envenenar sua alma. Não haverá espinhos capazes de atingir a sua essência. Olha, nunca pensei que fosse dizer isso, mas o fato é que seu processo de ressurreição é mais inteligente que o meu!

— Mais inteligente que o seu? Impossível, você renasce das cinzas, Bennu!

— E você está regenerando sua alma, estrelinha, está renascendo

para um novo oceano de possibilidades, sem precisar transformar em cinzas seu corpo físico, tão belo e dotado de tantas habilidades adquiridas em anos e anos de evolução.

Nesse momento a estrela se sentiu invadida por um sentimento novo. Algo como um bálsamo em sua alma. Como se portas de um novo mundo, ainda inexplorado, fossem abertas diante dela. Um alívio tomou conta do seu ser: era como se as dores da alma tivessem cedido lugar a algo maior, quase que transcendental. Nessa hora, veio a pergunta inevitável:

— Fênix Bennu, se você está aqui comigo, você existe tal qual minha mãe me falou! Você pode me levar às estrelas?…. Bennu?…Bennu?

Sem resposta, Sothis sentiu, de repente, a força de uma onda gigante, que a levou diretamente de volta às profundezas do oceano. Não via mais nada além de água, areia e espécimes marinhas com as quais convivia por ali. Não ouvia mais nada, além do silêncio das profundezas do mar. Olhou para seu corpo e não havia espinhos cravados sob a pele, atravessando seu esqueleto calcário. Mas a dor...bem, a dor ainda estava ali, como se sangrasse por dentro. Foi aí que pensou em tudo que Bennu lhe falara e concluiu que os espinhos lançados por Thorn não saíram de seu corpo, mas das suas atitudes. Foi o seu caráter, revelado no desprezo às angústias causadas por sua deslealdade e, sobretudo, na sua incapacidade de amar, que resultou no seu abandono, sozinha no vasto e frio oceano, sem a menor preocupação com seus sentimentos. Por isso a dor ainda tão forte e presente em seu peito. Entretanto, Sothis também lembrou que Bennu falou em processo, em perseverança, em paciência e o quanto ressaltou suas qualidades e sua força para atravessar esse caminho até a cura.

E assim, dia a dia, uma certeza foi ficando cada vez mais evidente: Ela foi feita para o amor, foi feita para amar e ser amada e não seria um espírito de porco, espinhento, qualquer, um espécime vazio de sentimentos e cheio de veneno, que iria desviá-la do seu caminho.

Os dias se passaram, Sothis se sentia melhor. A dor, ainda presente, já não era o centro das atenções de sua vida marinha. Entretanto, até hoje, ela se pergunta se tudo foi um sonho. Teria sido um devaneio o seu encontro com a Fênix Bennu? Quem sabe foi uma magnífica experiência além-mar!? Talvez os astros, em profunda conexão e sintonia com sua dor, trouxeram Bennu até ela. Ah, qualquer que seja a explicação(se é que ela existe), uma coisa é certa: Tal encontro só foi possível graças à sua característica mais preciosa: sua fé indestrutível no amor! Sim, o encontro com a sábia e esplendorosa ave foi fruto da sua incansável busca pelo sentimento que dá sentido à existência. A Fênix egípcia tinha razão: ela possuía o dom de encontrar amor, ainda que tudo fosse dor; de recriar esperança das cinzas e foi assim que, rompendo os limites do possível, ela foi buscar o amor além das fronteiras desse mundo. Esse amor que, infelizmente, nem todos conhecem, sabem compartilhar e, alguns, sequer sabem receber. O sentimento que é o alicerce para reconstrução e evolução de almas despedaçadas. E de sentimento Shotis entendia, afinal, ela era uma estrela-do-mar canceriana, com ascendente em peixes e lua em câncer, ora pois! Tudo nela era intenso, inclusive sua capacidade de renascer das cinzas da sua alma.

Foi nesse momento de profunda reflexão, que a empoderada estrela percebeu uma enorme sombra sobre ela, parecendo pairar sobre as águas do mar. Um sorriso se abriu e, por um instante, ouviu um sussurro celestial: “Sothis(Brilhante)”.


Texto escrito pelo escritor Rosa Medeiros, a partir da proposta do Desafio Criativo de julho de 2023, que teve como tema "Estrela-do-mar: Rompendo limites". Para conhecer a proposta de escrita vigente no mês, acesse aqui.

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