Biblioteca criativa: Escrever para não enlouquecer, de Charles Bukowski*



O bater da máquina, o crescente número de poemas, contos e romances, as palavras de incentivo, o desespero, a crescente na vida e a saúde que piora ao longo dos anos. Mulheres. Bebida. Tudo retratado por meio de cartas aos amigos editores e escritores. Escrever para não enlouquecer é uma aula de escrita, ainda que seu autor, Charles Bukowski, considerasse quaisquer aulas de escrita literária inúteis.

Ao longo das suas 256 páginas, vemos um escritor iniciante na carreira ganhar cada vez mais confiança e certeza do caminho que quer seguir, a ponto de criticar nomes renomados como o de Henry Miller ou de Ernest Hemingway.

"Li sobre o Herry Miller ter parado de escrever depois de ficar famoso. O que provavelmente significa que ele escreveu para ficar famoso. Não entendo isso: não há nada mais mágico e lindo do que as linhas se formando de um lado ao outro do papel. É tudo que existe. É tudo o que jamais existiu. Nenhuma recompensa é maior do que o ato de fazer. O que vem depois é mais do que secundário. Não consigo entender qualquer escritor que pare de escrever". (Carta destinada a John Martin, datada de 12 de julho de 1991, 9:39 da noite. Página 235)

A trajetória do autor é registrada entre cartas trocadas entre 1945 e 1993 e trazem opiniões sobre a vida, a arte, o amor, a literatura, o mercado editorial e a boemia, de um Bukowski que sente que não tem muito tempo a perder. Em alguns momentos fica claro uma pressa, um imediatismo em terminar a epístola, para continuar na tarefa árdua de transformar palavras em literatura.

No livro há páginas com cartas fac-símiles, contendo não só a grafia, mas também correções e ilustrações feitas por Charles Bukowski. Na imagem, as páginas 16 e 17.


Quanto mais o tempo avança, mais fica claro para o leitor que Bukowski tem uma certeza de que seu projeto literário gira em torno da obsessão pela escrita. Para ele, escritor é quem escreve freneticamente, de forma a se aprimorar em seu ofício de forma crua. Neste sentido, Bukowski gosta de trabalhar sozinho, de viver sozinho, de pôr no papel o seu ponto de vista do mundo sem se contaminar pela opinião alheia.

Não me entenda mal. Quando digo que basicamente escrever é uma trambicagem árdua, não quero dizer que é uma vida ruim, se você conseguir se safar. É o milagre dos milagres ganhar a vida com a máquina. E a sua ajuda tem sido uma incrível injeção de ânimo. Você nunca terá ideia do quanto. Mas escrever exige disciplina como tudo mais. As horas passam muito depressa, e, mesmo quando não estou escrevendo, fico de bobeira, e é por isso que não gosto de pessoas me trazendo cerveja e puxando papo. Elas me embaralham a visão, me tiram do fluxo. Claro que não consigo ficar sentado na frente da máquina dia e noite, então o hipódromo é um bom lugar para deixar o combustível REFLUIR. Consigo entender por que Hemingway precisava de suas touradas — era um rápido passeio de ação para recompor sua visão". (Carta destinada a John Martin, datada de novembro de 1970. Página 144)


A leitura é válida não apenas para os fãs do escritor, mas também para quem pretende seguir carreira na profissão. Em alguns trechos — como o mencionado acima — fica bem claro o método de trabalho do autor: escrita desenfreada intercalada com momentos de ócio, sem espaços para estrelismos. Bukowski vê como um tanto desnecessária a fama, uma vez que ela desvia a atenção do trabalho. Veja que há aqui uma separação clara na vida do autor: ele escreve, para não enlouquecer, quer ganhar dinheiro com isso e viver de forma digna, mas não gosta das obrigações que o reconhecimento lhe traz (como os convites para ser professor de escrita literária e a quantidade de estudantes que batem à sua porta pedindo entrevistas).

"Minha ideia de escritor é alguém que escreve. Que se senta diante de uma máquina datilográfica e vai encadeando as palavras. Essa me parece ser a essência. Não ensinar aos outros como se faz, não ficar sentado em seminários, não ler para a multidão enlouquecida. Por que razão existem tais extrovertidos?" (Carta destinada a Jack Stevenson, datada de março de 1982. Página 191)

Ainda que renegue a fama e a academia e se declare um escritor solitário, a quantidade de cartas que formam este volume nos provam que Bukowski não trabalha tão sozinho quanto pensa. Em várias delas, nota-se a troca, as reflexões que levam ao aprendizado do ofício de escritor — sejam elas abraçando ou refutando alguma crítica recebida ou analisando e criticando o trabalho de outro autor. Neste sentido a leitura do livro também é válida, porque Bukowski está em constante processo de avaliação sobre quem são os escritores que o influenciam e o porquê disso.

Capa.


Livro: Escrever para não enlouquecer
Título original: On Writing
Autor: Charles Bukowski
Tradução: Rodrigo Breuning
Páginas: 256
Editora: L&PM
Série: Bukowski
Sinopse: Editado por Abel Debritto, tradutor, editor e autor de Bukowski: King of the Underground, Escrever para não enlouquecer é uma espécie de autobiografia não autorizada. Contém cartas escritas e ilustradas pelo escritor entre 1945 e 1993, nas quais ele revela os bastidores de sua própria história. Nessa correspondência, originalmente destinada a amigos e editores, Bukowski relata fatos e frustrações do seu dia a dia, discorre acerca da arte de escrever e expõe suas opiniões (geralmente bombásticas) sobre autores célebres como Henry Miller, Faulkner e Hemingway – sempre se valendo do estilo irônico que o celebrizou. Repletas de observações inusitadas, fruto de uma sabedoria adquirida tanto nas ruas quanto nos livros, as espirituosas cartas do velho safado são uma leitura indispensável para qualquer fã.

*Resenha postada originalmente no Algumas Observações.


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