Ao sair da praia, fui abordado por um homem que se apresentou como sem-abrigo. Chamava-se Tales, vestia um polo vermelho gasto e um pouco roto debaixo do braço, visível quando o movia. Educadamente, perguntou-me se tinha algo para comer.
Respondi que não, pois estava de chinelos, calções de praia e em tronco nu, sem carteira. Contudo, pensei que ele devia estar a precisar de algo para matar a fome e eu podia pagar com o telemóvel.
A uns metros de distância, estava um vendedor de abacaxis com o seu carrinho cor de laranja. Aproximei-me e Tales acompanhou-me. Pedi ao vendedor que cortasse um abacaxi. Com golpes precisos usando uma catana velha, mas afiada, ele cortou o fruto e serviu-o a Tales, que me agradeceu com um abraço apertado. Naquele momento, percebi que aquele pedaço de fruta poderia ser a sua única refeição, como um pequeno-almoço às 4 da tarde.
— O que fazes aqui, Português? — perguntou ele.
— Talvez a teia a que todos estamos ligados, e que chamamos habitualmente de destino, tenha sido a razão deste encontro contigo hoje. Mas eu vivo aqui há pouco mais de dois meses, estou à procura da minha essência.
— E tu, o que te traz a esta praia? — perguntei.
— Às vezes, venho aqui porque é um lugar tranquilo. O sol e o som das ondas ajudam a esquecer um pouco as dificuldades. Vivo com a minha família na rua; temos de comer o que encontramos e as pessoas gentis como tu nos dão. Portanto, é uma pausa no meio das tempestades que enfrento. Agradeço-te de coração por este gesto. Há dias em que pequenos atos de bondade fazem toda a diferença na vida de alguém.
— Outrora fui professor de filosofia, mas a vida pregou-me uma partida e aqui estou, sem teto e sem dinheiro para proporcionar uma vida melhor à minha família neste momento.
— Mas sei que um dia tudo vai melhorar, e viveremos felizes novamente numa casa confortável, com um jardim onde a nossa filha poderá brincar e uma oficina onde a minha mulher poderá voltar a pintar os seus quadros.
— E afinal estou vivo, não me posso queixar, certo?
Naquele momento, eu não sabia o que responder; a verdade crua daquele homem à minha frente deixou-me incapaz de articular qualquer resposta.
Lembrei-me das vezes em que reclamava do meu trabalho, da minha casa, do meu carro, da minha roupa, da comida — enfim, reclamava de tudo, e ainda assim tinha tudo.
— Tu vais encontrá-la, a tua essência, digo. Afinal, ela está sempre contigo; tu é que estavas distraído. — Disse Tales, enquanto limpava a boca com a mão. Sorriu e seguiu o seu caminho.
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Autor do texto, Marcelo Costa. |
Sobre o autor: Marcelo é um escritor português cujo percurso de vida foi profundamente moldado por uma viagem transformadora a outro continente. Durante meses, mergulhou numa cultura diferente, onde se redescobriu e encontrou inspiração nas experiências vividas. Esta jornada levou-o a explorar as profundezas da sua alma, e hoje dedica-se à escrita, trabalhando no seu primeiro livro. A sua obra reflete o poder das viagens, tanto interiores quanto exteriores, e como estas podem mudar o rumo da vida. Marcelo procura, através da sua escrita, inspirar outros a encontrar o seu próprio caminho.
Leia outros textos de Marcelo Costa no site Conversa com Desequilíbrio.
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Sobre o texto: conto escrito a partir da proposta do Vivenciando a escrita para o mês de agosto, "Seu personagem é parado no meio da rua para uma entrevista. Como é este diálogo?". Para conhecer os próximos temas e saber como participar, clique aqui.
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