Produções literárias: O que você quer ser quando crescer? | Por Leidiane Bueno
Caronte e Plutão. Foto por Nasa. |
Quando eu tinha 5 anos de idade eu queria ser astronauta. Eu sei, isso não é tão original. Mas eu queria ser astronauta e viajar para Plutão. Tinha por hábito observar as estrelas durante a noite e brincar de encontrar formas nas nuvens durante o dia. Eu poderia viver uma vida inteira ali, deitada na grama, braços cruzados sob a cabeça, olhos atentos àquela imensidão, tentando descobrir o que havia por trás de todo aquele azul.
Não fale com estranhos. Minha mãe costumava dizer.
Alguém diz meu nome e me pergunta se eu quero ir a um lugar legal. Todas as crianças querem ir a um lugar legal. Afinal, eu não estava falando com estranhos.
Eu consigo me lembrar do cheiro, da sensação na pele, do ar tocando o meu rosto enquanto as palavras saíam quentes. Consigo ver meus próprios olhos como espectadora de mim mesma. Aquele lugar não era legal, mas eu estive lá algumas vezes. Eu tinha um segredo, mas eu não tinha mais uma parte de mim mesma.
O que você quer ser quando crescer?
Porque, de repente, Plutão não é mais um planeta e eu não sou mais a mesma criança. E eu gosto de livros. Eu gosto de livros. Eu não tenho amigos. Eu não falo com estranhos, eu sou estranha agora. Eu gosto de desenhar, mas os meus desenhos não podem ser anexados na parede. Eu não gosto mais de falar. Eu tenho um segredo.
Eu falo com um estranho, seu nome é Robinson Crusoe. Eu me pareço com ele. Nós compartilhamos conversas solitárias e o mesmo desejo de encontrar um lugar para chamar de lar. Eu falo com Robinson todos os dias, ele gosta de barcos, eu gosto de livros, mas eu ainda gosto de planetas. Nós somos amigos. E eu posso dizer a ele que tenho pesadelos.
O que você quer ser quando crescer?
Porque, de repente, Plutão não é mais um planeta e eu sou adolescente. E eu gosto de livros. Eu gosto de livros. Mas eu ainda gosto de planetas. Eu não tenho amigos. Eu não falo com estranhos, eu ainda sou estranha. Eu não gosto mais de desenhar, porque os meus desenhos não podem ser anexados na parede. Eu não gosto de falar, mas eu gosto de escrever. Eu tenho outro segredo. E, mais uma vez, eu não falei com nenhum estranho.
Ainda sinto o cheiro do vinho no meu rosto, mas eu não me lembro de tudo. Eu me lembro da dor. Eu me lembro das promessas de que não me machucariam. Mas estavam me machucando. Eu ainda me lembro de pedir para que parassem. Eu me lembro da dor.
Eu tenho um caderno cheio de segredos e vários amigos na estante. Eu gosto de escrever. Eu tenho pesadelos.
O que você quer ser quando crescer?
Porque, de repente, Plutão não é mais um planeta e eu sou uma mulher. E eu gosto de livros. Eu gosto de livros. Mas eu ainda gosto de planetas. Eu não tenho amigos. Hoje eu falei com um estranho, eu continuo sendo estranha. Eu não gosto mais de desenhar, porque os meus desenhos não podem ser anexados na parede. Eu não gosto de falar, mas eu gosto de escrever. Eu tenho os mesmos segredos. O estranho diz que me ama, mas ele não lê o que eu escrevo. Ele diz que eu sou estranha. Ele não gosta dos meus amigos na estante.
Eu não tenho mais um caderno cheio de segredos, mas eu tenho um caderno novo. Eu não consigo dormir. Ele não percebe isso. Quando consigo dormir eu tenho pesadelos.
O que você quer ser quando crescer?
Porque, de repente, Plutão não é mais um planeta e eu sou uma mulher. E eu gosto de livros. Eu gosto de livros. Mas eu ainda gosto de planetas. Eu tenho poucos amigos. Hoje comecei a falar com outro estranho. Ele me observa a distância. Ele faz eu me sentir uma garota normal. Eu não gosto mais de desenhar, porque os meus desenhos não podem ser anexados na parede. Eu não gosto de falar, mas eu gosto de escrever. Eu começo a compartilhar meus segredos. O estranho lê o que eu escrevo. Ele não diz que eu sou estranha. Eu penso que ele sabe muito sobre mim. Que sentimento estranho! Nós nos conhecemos hoje. Ele gosta dos meus amigos na estante. Eu me sinto livre. Mas eu tenho outro segredo.
Eu não tenho mais um caderno cheio de segredos, mas eu tenho um caderno novo. Eu não consigo dormir. Eu gosto de falar com um estranho. Quando consigo dormir eu tenho pesadelos.
O que você quer ser quando crescer?
Porque, de repente, Plutão deixou de ser um planeta e eu sou uma mulher, mas eu continuo a falar com estranhos. E eu gosto de livros. Eu gosto de livros. Mas eu ainda gosto de planetas. Eu tenho alguns amigos. Eu sou uma garota normal. Eu não gosto mais de desenhar, porque os meus desenhos nunca puderam ser anexados na parede. Eu gosto de falar e gosto de escrever. Eu não tenho mais segredos. Eu sou quem eu queria ser quando crescesse. O estranho lê o que eu escrevo. Ele diz que me ama. Ele gosta dos meus amigos na estante. Eu me sinto livre. Eu me sinto em casa. Mas eu ainda tenho esse segredo.
Eu não tenho mais um caderno cheio de segredos, mas eu tenho um caderno novo. Eu não consigo dormir. Mas quando estou com ele eu posso dormir por algumas horas. Quando consigo dormir eu tenho pesadelos.
O que você quer ser quando crescer?
Porque, de repente, Plutão deixou de ser um planeta e eu não sou mais uma criança, mas eu continuo a falar com o mesmo estranho. E eu gosto de livros. Eu gosto de livros. Mas eu ainda gosto de planetas. Eu tenho alguns amigos. Eu sou uma garota normal. Eu não gosto mais de desenhar, porque os meus desenhos nunca puderam ser anexados na parede. Eu gosto de falar e gosto de escrever. Eu não tenho segredos. Eu sou o que eu queria ser quando crescesse. O estranho lê o que eu escrevo. Ele não diz nada. Ele nunca faz. Ele gosta dos meus amigos na estante. Eu me sinto livre. Eu continuo escrevendo. Mas eu ainda tenho esse segredo.
Eu não tenho mais um caderno cheio de segredos, mas eu tenho um caderno novo. Eu não consigo dormir. Quando consigo dormir eu tenho pesadelos. Às vezes, não consigo respirar. Eu sinto falta de casa.
Sentimentos não são como pessoas, preciso falar e pensar sobre eles para que os fantasmas possam ir. Confiar em alguém novamente exige coragem, mas a vida é essa mistura de arte e caos e eu estou completamente apaixonada. Antes de obter a cura, a ferida precisa ser exposta e limpa. Não importa o quanto isso doa, o processo de cura faz cada segundo de dor valer a pena. Se eu obtenho cicatrizes, tudo bem. Cicatrizes não doem. Eu gosto de cicatrizes. Elas contam histórias.
Texto produzido por Leidiane Bueno, a partir da proposta do Desafio Criativo de abril, que teve como tema A Beleza de Recomeçar. O Desafio Criativo estimula os nossos autores a escreverem partindo de temas elaborados pela nossa equipe. Para conhecer os 12 temas de 2020, clique aqui.
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